sábado, 16 de janeiro de 2010

JAIME


Os sábios resplandecerão, como o resplendor do firmamento;
e os que ensinam a muitos a justiça,
brilharão como as estrelas, por toda a eternidade
.
(Dn 12,3)


1970. Mudanças de valores nas sociedades ocidentais. Afirmação da juventude. "Movimento" hypie. Renovação na Igreja Católica. Guerras e engajamentos pela Paz.
América Latina: lutas de libertação e pela construção do socialismo. Sanguinárias ditaduras militares, apoiadas pelos Estados Unidos. Comprometimento político mais progressista da Igreja Católica - a Teologia da Libertação - as Comunidades Eclesiais de Base.
Brasil: a fase mais feroz da ditadura civil-militar. A Igreja Católica e as Igrejas Reformadas históricas e outras como a Metodista vão se tornando a grande força de enfretamento à ditadura e passando a caminhar com o povo, preferencialmente em suas camadas mais pobres. As revelações dos Festivais da Canção: Chico Buarque, Geraldo Vandré, Milton Nascimento, Elis Regina...

No município de São Gonçalo, no bairro da Venda da Cruz, no alto do Morro do Sabão, havia a pequena capela de Nossa Senhora de Fátima (99 degraus altos, da baixada até a igrejinha). Para lá o Bispo mandou um padre que considerava incômodo, pra se ver livre. Mas logo o povo do morro começou a participar, o povo da baixada começou a subir e se organizou a "Comunidade Missionária Nossa Senhora de Fátima da Venda da Cruz", conhecida por não vender sacramentos (nenhum sacramento era cobrado), por sua pastoral com jovens e crianças e pelas velhas boas de trabalho. E pela liturgia participativa, mais engajada na vida. E, sobretudo, pela pobreza: só entrava a grana necessária para assegurar os trabalhos. Nunca sobrou... Nem faltou!
Havia um grupo de jovens, o Juvenil. E também alguns jovens engajados que não participavam do Juvenil. Os jovens independentes coordenavam a vitrine da Comunidade: a Missa dos Jovens, onde se faziam as experiências litúrgicas mais avançadas e politizadas. Como não tinham nenhuma estrutura formal para engessá-los, eram mais ágeis, autônomos na formação e com trânsito mais livre na juventude que não participava da Igreja. Assim, foram crescendo e ficando conhecidos como "a Turma".
Num domingo 10 de dezembro, aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos - na Missa dos Jovens que desenvolvia esse tema - Jaime apareceu. A partir daí foi chegando, devagar, se aproximou da Darli, da Leila e, via elas, se enturmou.
Era de Sergipe, único homem entre muitas irmãs, foi o último a vir pro Rio de Janeiro pra estudar e conseguir trabalho melhor. Em Sergipe ficaram apenas os pais e a irmã mais nova. Estudava na Universidade Rural. Tinha o olhar e o sorriso (permanente no seu rosto) marcantemente sinceros, verdadeiros, francos. Uma grande lealdade e solidariedade. Também marcante o seu senso de humor. Bom observador, tinha um apelido bem humorado para cada um, sempre a partir de uma característica da pessoa. Era tímido, mas logo se tornou uma das principais lideranças da turma. Para "conferir" o nosso discurso, leu a Bíblia inteira em poucos meses. Era de formação marxista. O Evangelho de Jesus de Nazaré tornou-se norte de sua vida e inspirador do seu compromisso com os pobres e todos os marginalizados, numa perspectiva libertadora e não-violenta. Estava sempre indicando ou emprestando um livro a alguém, recomendando uma peça de teatro ou um filme. Era especialista em falar a linguagem do outro.
Após dois anos na Venda Cruz, foi aprovado num concurso da Caixa Econômica e mandado para Porto Alegre. Lá continou o engajamento na Igreja entre os jovens. Dois anos depois, voltou.
Ficou mais dois anos e se transferiu para Brasília. Ali começou a atuar junto às prostitutas.
Tendo como companheira uma das meninas da zona que conheceu em Brasília, foi para Unaí, sudoeste de Minas. Ali nasceu seu primeiro filho. Mais tarde, separado, retornou a Sergipe, com o filho, onde constituiu nova família e teve mais três filhos.
Jaime escreveu e publicou poesias, nas quais os excluídos são personagens recorrentes. Tornou-se uma grande liderança sindical entre os bancários no Nordeste, manteve a militância na Igreja.
A partir de sua volta para Sergipe, perdemos o contato. Mas sempre permaneceu o meu melhor Amigo.
Em março do ano passado encontrei com uma de suas irmãs e recebi a noticia da morte (prefiro dizer "Páscoa") de Jaime, por complicações cardíacas, ocorrida em 16 de janeiro, aos 58 anos.
Hoje, 1 ano de sua Páscoa, a saudade fica mais à flor da pele, mas o sentimento de sua Presença querida também. E decidi compartilhar isso com vocês, essa Memória que nos empurra para frente, para a revisão e aprofundamento das coisas nas quais acreditamos e esperamos, como homenagem ao Jaime Norberto (da Silva, como tantos e tantos brasileiros). E como demonstração de que existem por aí, felizmente, pessoas de diferentes idades que se incomodam com a injustiça, a miséria e outras mazelas do mundo humano, pessoas que não ficam reclamando mas se engajam, se comprometem, se solidarizam e começam a Nova Sociedade justa, fraterna partindo delas mesmas. Nada do que disse Jaime deixou de viver pessoalmente. Isso lhe assegurou autoridade e credibilidade. Sua Memória é uma das memórias fundamentais nestes tempos de euforia consumista confundida com felicidade, de extremado individualismo e alienação de indivíduos e instituições.
* ATENÇÃO: para ver o vídeo, dê pausa na música, no rodapé do Blog.



2 comentários:

  1. Euzébio quando o Jaime foi para Brasília coincidiu com meu aniversário de 15 anos e que por sinal era também os 15 anos da cidade. A partir daí mantivemos um contato via carta, tenho estas cartas até hoje. Nunca consegui joga-las fora. ele sempre foi um amigo verdadeiro.

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  2. Euzébio,
    Fiqei muito tocada pelo texto. Tenho as melhores lembrancas deste período. Só vc para fazer este resgate. Bjs

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